CEGADOS PELA ONDA DE NEGATIVISMO QUE SACODE A GRANDE MÍDIA E RESPINGA
SUAS ÁGUAS CONTAMINADAS NA MENTE ÀS VEZES AMORFA E POR DEMAIS
COMPLACENTE DOS TELESPECTADORES, CARECEMOS DE EXEMPLOS DE SUPERAÇÃO.
ESSE É UM DELES. O EX-MENDIGO ENCONTROU FORÇAS, SABE-SE LÁ DE ONDE, PARA
PASSAR EM UM CONCURSO PÚBLICO, MESMO QUANDO A FOME ERA A ÚNICA MATÉRIA
QUE ELE SABIA DE COR E O SOFRIMENTO CERCAVA QUASE SEM TRÉGUA A SUA
ROTINA DIÁRIA. PORÉM, NO FUNDO DE TANTA AMARGURA, A ESPERANÇA RESISTIU E
VENCEU. (PABLO ROBLES)
TÍTULO DA MATÉRIA: Ubirajara calcula
FONTE: Carta Capital - Sociedade http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=6&i=1598
Quase
ninguém acreditou. Um morador de rua, um mendigo, passar no concurso do
Banco do Brasil? Mas Ubirajara Gomes da Silva existe, é de carne e
osso, mais ossos que carne, ao menos até ser aprovado pelo BB. Com 1,74
metro de altura, chegou a pesar 50 quilos.
Aos 27 anos, mulato,
olhar zen, postura zen, Silva fala mansamente, às vezes é quase difícil
entendê-lo. Tem o segundo grau, que conseguiu em exames do supletivo.
Mas é diplomado em matéria de sofrer. Filho de uma garçonete com um
ex-policial, que não o reconheceu como filho. Sobre essas coisas,
digamos, menos materiais, ele não gosta de falar. Dói mais que a fome.
– Essa prova que eu fiz agora foi até no Dia dos Pais, 12 de agosto, ele diz.
– Você já chorou muito?
– Já. Já chorei tanto, que eu não tenho mais lágrimas.
– Por quê?
–
Falta de mãe, de família. De pai. (Longo silêncio.) Bira saiu de casa
para morar com a avó. Passou a levar surras. Fugiu para as ruas, aos 15
anos. Quando tinha 17, soube que sua mãe falecera, soube apenas, mas não
pôde ir ao velório. Nos 12 anos em que morou nas ruas, dos 15 aos 27,
conta que certa vez ficou 30 dias sem comer.
– Como é que alguém consegue?
–
Passando... Eu passei 30 dias sem comer, mas tomando água, comendo
muito pouco, 30 dias sem me alimentar. Eu vivia dormindo, era muito
sonolento, minha pressão caía, e o pessoal falava, “ele só quer dormir. É
a vida que ele quer”. O pessoal me chamava de preguiçoso, de doido...
– E você se acostumou a passar fome?
–
Me acostumei assim, não é? Não é que eu me acostumei. Me acostumei
porque não tinha. Mas não me acostumei de achar aquilo uma coisa
legal... me acostumei por causa de não ter mesmo, de não ter de onde
ganhar.
– Como é que você conseguia comer?
– É
interessante esse negócio de comida, porque eu pegava 1 real, todos os
dias, ia lá no Mercado da Madalena e comprava uma fatia pequenininha de
bolo-de-rolo e um copo de coca. Isso pela manhã. À tarde, normalmente eu
não comia.
– E como é que você conseguia estudar com fome?
–
Eu me alimentava muito de glicose, de coisas doces. Café muito doce.
Não sei se você sabe, quando se come glicose, alguma coisa doce, ajuda a
raciocinar. Em obediência ao senso comum, pergunto:
– Você estudou pro concurso do Banco do Brasil como?
– Três dias antes.
– Mas o que você vinha estudando antes?
– Português, matemática. Assim, eu fui com a bagagem que eu tinha. Eu não estudei muito não.
– E como é que você estudava português e matemática?
–
Eu faço assim, ó. Eu até brinco. Eu não sou exemplo de estudo não.
Porque eu sou um cara que eu pego assim: 10 regras de matemática, boto
lá e fico estudando. Aí jogo 10 regras de português... uma coisa que não
tem nada a ver. Quando eu estou achando uma coisa muito chata, ou está
muito difícil, pulo pra outra coisa.
– E onde você pega essas 10 regras de português?
–
Tem um programa, um site muito bom chamado “Só Português”, tem outro,
“Só Matemática”. Tem os testes do PCI, concursos, que são muito bons.
Ali tem testes, provas, aí eu saio fazendo. Então a gente sai de uma
dificuldade e entra em outra. Programa, site, como assim? Como pode um
sem-teto, um cara que não tem o que comer, acessar a internet?
–
Se eu pegasse 5 reais, eu me perguntava: o que eu vou fazer? Por
exemplo, eu ia tomar café, que custa 1 real, e sobravam 4. Ia entrar na
internet, que eu ia precisar, já virou mania. Quando não tinha dinheiro,
ia em lugares gratuitos. Quando eu pagava internet, eu ficava sem
almoço ou sem tirar uma carteira de estudante...
Assim esclarecido, sabedor de que a vontade é a sua ferramenta, voltamos:
–
Seu amigo Carlos Eduardo chama a atenção para o fato de que entre 19
mil candidatos no Recife, apenas 171 não levaram ponto de corte em
conhecimento bancário. Como é que você sabia conhecimento bancário sem
ter apostila?
– Eu gosto muito de ler sobre banco, a parte de
economia dos jornais. Procurava saber algumas coisas, tipo commodities,
taxa Selic, ouro...
– Tudo a ver com a sua realidade...
– Não, nada a ver. Obrigado pela ironia.
Peço-lhe
desculpa. Bira é zen, mas responde de pronto. Assim como se diz, no
meio do povo, que “a dor ensina a parir”, ele pensa rápido e reage.
Quando não tinha casa, ele se abrigava na porta de uma farmácia, de
madrugada, encolhido em um batente de 1 metro de comprimento. E porque a
dor é mestra eficiente, procurou conhecimento com os instrumentos que a
sua necessidade criou. Ele não tem gramática – formal, em livro –, mas
fala com boa sintaxe, léxico e prosódia. Não tem livro didático de
matemática, mas não errou uma só questão de juros na prova. Ele, que era
o próprio “não tem”, o que fez? Criou a sua didática, a sua gramática, a
sua matemática, assim como um faminto acha o caminho do pão.
–
Eu deixei de estudar em escola em 1995, quando saí de casa. Em 2001
voltei para a sala de aula. Pra comer, sabemos. Voltou para a sala de
aula para ter direito à merenda da noite. Mas na hora procuramos saber o
método que usou para o concurso.
– Matemática, como todo
conhecimento, é uma construção. Como você pode pegar aqui e ali? No
concurso do Banco do Brasil houve questões de juros compostos.
– Ah, juros eu sei bem.
– E como é que você fez isso sem livro?
– Ah, é porque livro... eu lhe digo, eu sou autodidata e sou aquele cara que aprende fazendo.
– Mas fazendo a partir de que exemplos, a partir de que didática?
–
Depende. Eu pergunto... Eu conheço um cara que está fazendo Engenharia.
Ele se aborreceu comigo, porque ele estava tentando me ensinar um
problema, e eu fiz os cálculos sem fazer cálculos. Mentalmente. Ele
ficou com muita raiva. Quase quebra a cadeira na minha cabeça. Ele me
disse: “Eu faço Engenharia esse tempo todinho, eu passo duas folhas para
dar um resultado zero. Você pega e faz de cabeça?”
Natural. Quem
não tem, faz da própria cabeça um algoritmo e um caderno. O improvisado
professor disso não sabia. E até conhecer Bira, eu também não. Estamos
todos envenenados pelos métodos formais, e julgamos que a mente se pauta
pela ordem do á-bê-cê. Ele, que é tido como exceção, é apenas um ser
como qualquer um de nós, quando não se curva.
– Quem é você?
– Sou um cara teimoso, persistente... na medida do possível, sagaz, eu acho. A gente tenta, tenta, tenta, tem objetivo.
– Se você tivesse de enviar uma palavra para as pessoas que se encontram em uma situação difícil, na rua, o que você diria?
– Lutem.
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